Segue despacho do Ministro CELSO DE MELLO no caso do estagiário que supostamente foi agredido pelo Ministro do STJ Ari Pargendler, onde foi determinado que os autos não devem correrem segredo de justiça. Segue, ainda, o link para acesso das informações processusais do andamento do feito no STF:
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoDetalhe.asp?incidente=3974915
DESPACHO: Cabe acentuar, desde logo, que nada deve justificar, em princípio, a tramitação, em regime de sigilo, de qualquer procedimento que tenha curso em juízo, pois, na matéria, deve prevalecer a cláusula da publicidade.
Não custa rememorar, tal como sempre tenho assinalado nesta Suprema Corte, que os estatutos do poder, numa República fundada em bases democráticas, não podem privilegiar o mistério.
Na realidade, a Carta Federal, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º), enunciou preceitos básicos cuja compreensão é essencial à caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível, ou, na expressiva lição de BOBBIO (“O Futuro da Democracia”, p. 86, 1986, Paz e Terra), como “um modelo ideal do governo público em público”.
A Assembléia Nacional Constituinte, em momento de feliz inspiração, repudiou o compromisso do Estado com o mistério e com o sigilo, que fora tão fortemente realçado sob a égide autoritária do regime político anterior.
Ao dessacralizar o segredo, a Assembléia Constituinte restaurou velho dogma republicano e expôs o Estado, em plenitude, ao princípio democrático da publicidade, convertido, em sua expressão concreta, em fator de legitimação das decisões e dos atos governamentais.
Isso significa, portanto, que somente em caráter excepcional os procedimentos penais poderão ser submetidos ao (impropriamente denominado) regime de sigilo (“rectius”: de publicidade restrita), não devendo tal medida converter-se, por isso mesmo, em prática processual ordinária, sob pena de deslegitimação dos atos a serem realizados no âmbito da causa penal.
É por tal razão que o Supremo Tribunal Federal tem conferido visibilidade a procedimentos penais originários em que figuram, como acusados ou como réus, os próprios membros do Poder Judiciário (como sucedeu, p. ex., no Inq 2.033/DF e no Inq 2.424/DF), pois os magistrados, também eles, como convém a uma República fundada em bases democráticas, não dispõem de privilégios nem possuem gama mais extensa de direitos e garantias que os outorgados, em sede de persecução penal, aos cidadãos em geral.
Essa orientação nada mais reflete senão a fidelidade desta Corte Suprema às premissas que dão consistência doutrinária, que imprimem significação ética e que conferem substância política ao princípio republicano, que se revela essencialmente incompatível com tratamentos diferenciados, fundados em ideações e práticas de poder que exaltam, sem razão e sem qualquer suporte constitucional legitimador, o privilégio pessoal e que desconsideram, por isso mesmo, um valor fundamental à própria configuração da idéia republicana que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade.
Daí a afirmação incontestável de JOÃO BARBALHO (“Constituição Federal Brasileira”, p. 303/304, edição fac-similar, 1992, Brasília), que associa, à autoridade de seus comentários, a experiência de membro da primeira Assembléia Constituinte da República e, também, a de Senador da República e a de Ministro do Supremo Tribunal Federal:
“Não há, perante a lei republicana, grandes nem pequenos, senhores nem vassalos, patrícios nem plebeus, ricos nem pobres, fortes nem fracos, porque a todos irmana e nivela o direito (...).” (grifei)
Nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República. Nada deve justificar a outorga de tratamento seletivo que vise a dispensar determinados privilégios, ainda que de índole funcional, a certos agentes públicos.
Desse modo, e fiel à minha convicção no tema em referência (Inq 2.881/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), não vejo motivo para que estes autos tramitem em “segredo de justiça”, pois inexiste expectativa de privacidade naquelas situações em que o objeto do litígio penal – amplamente divulgado tanto em edições jornalísticas quanto em publicações veiculadas na “Internet” – já foi exposto de modo público e ostensivo.
Sendo assim, determino a reautuação deste procedimento penal, em ordem a que não continue a tramitar em regime de sigilo.
2. Consta, dos termos e documentos produzidos a fls. 03/07, que o ora requerido – que dispõe de prerrogativa de foro, “ratione muneris”, perante o Supremo Tribunal Federal, nos ilícitos penais comuns (CF, art. 102, “c”) – teria cometido, em tese, infração de menor potencial ofensivo.
Se configurado tal contexto, justificar-se-ão algumas considerações preliminares, notadamente aquelas pertinentes à aplicabilidade, ao caso, da Lei nº 9.099/95, tendo em vista o limite penal máximo a que se refere o art. 61 de mencionado diploma legislativo.
Impende destacar, sob tal perspectiva, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar questão de ordem suscitada no Inq 1.055/AM, Rel. Min. CELSO DE MELLO (RTJ 162/483-484), entendeu plenamente aplicáveis, aos procedimentos penais originários instaurados perante esta Corte, as medidas de despenalização previstas na Lei nº 9.099/95, em ordem a viabilizar a ampliação do espaço de consenso em sede penal, valorizando, desse modo, na definição das controvérsias oriundas do ilícito criminal, a adoção de soluções fundadas na própria vontade dos sujeitos que integram a relação processual penal:
“PROCEDIMENTOS PENAIS ORIGINÁRIOS (INQUÉRITOS E AÇÕES PENAIS) INSTAURADOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - CRIME DE LESÕES CORPORAIS LEVES E DE LESÕES CULPOSAS - APLICABILIDADE DA LEI N. 9.099/95 (ARTS. 88 E 91).
- A exigência legal de representação do ofendido nas hipóteses de crimes de lesões corporais leves e de lesões culposas reveste-se de caráter penalmente benéfico e torna conseqüentemente extensíveis, aos procedimentos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal, os preceitos inscritos nos arts. 88 e 91 da Lei n. 9.099/95.
O âmbito de incidência das normas legais em referência - que consagram inequívoco programa estatal de despenalização, compatível com os fundamentos ético-jurídicos que informam os postulados do Direito penal mínimo, subjacentes à Lei n. 9.099/95 - ultrapassa os limites formais e orgânicos dos Juizados Especiais Criminais, projetando-se sobre procedimentos penais instaurados perante outros órgãos judiciários ou tribunais, eis que a ausência de representação do ofendido qualifica-se como causa extintiva da punibilidade, com conseqüente reflexo sobre a pretensão punitiva do Estado.”
(Inq 1.055-QO/AM, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
É que, muito embora a Lei nº 9.099/95 regulamente os Juizados Especiais Cíveis e Criminais - que constituem órgãos judiciários situados no primeiro grau de jurisdição -, torna-se imperioso observar que as regras legais nela contidas aplicam-se, também, às ações penais originárias, inclusive àquelas ajuizáveis, nos termos do art. 102, I, “b” e “c” da Constituição da República, perante o Supremo Tribunal Federal. Esse, inclusive, é o entendimento, dentre outros, de DAMÁSIO E. DE JESUS (“Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada”, p. 86, 1995, Saraiva).
Essa mesma orientação doutrinária – que enfatiza a plena autonomia de determinados institutos, como os definidos em referida legislação, e que sustenta a possibilidade de sua aplicação também a causas instauradas fora do âmbito do próprio Juizado Especial Criminal - é igualmente perfilhada por LUIZ FLÁVIO GOMES (“Suspensão Condicional do Processo Penal”, 1995, RT).
É preciso ter presente que o estatuto disciplinador dos Juizados Especiais, mais do que simples regulamentação normativa desses órgãos judiciários de primeira instância, importou em expressiva transformação do panorama penal vigente no Brasil, criando instrumentos destinados a viabilizar, juridicamente, processos de despenalização, com a inequívoca finalidade de forjar um novo modelo de Justiça criminal.
É por essa razão que o magistério doutrinário, ao enfatizar as premissas ideológicas que dão suporte às medidas despenalizadoras previstas na Lei n. 9.099/95, confere especial primazia aos institutos (a) da composição civil (art. 74, parágrafo único), (b) da transação penal (art. 76), (c) da representação nos delitos de lesões culposas ou dolosas de natureza leve (arts. 88 e 91) e (d) da suspensão condicional do processo (art. 89), cabendo enfatizar, quanto a estes institutos, que eles, na realidade, equivalem a um verdadeiro “nolo contendere”, “que consiste numa forma de defesa em que o acusado não contesta a imputação, mas não admite culpa nem proclama sua inocência” (ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, ANTONIO SCARANCE FERNANDO E LUIZ FLÁVIO GOMES, “Juizados Especiais Criminais”, p. 191, 1996, RT – grifei)
Na realidade, os institutos em questão - além de derivarem de típicas normas de caráter híbrido, pois se revestem de projeção eficacial tanto sobre o plano formal quanto sobre a esfera estritamente material, gerando, quanto a esta, conseqüências jurídicas que extinguem a própria punibilidade do agente - consagram, na perspectiva da nova filosofia que informa a Lei nº 9.099/95, soluções de índole consensual vocacionadas a permitir a pronta superação do litígio gerado pela prática da infração penal.
Torna-se relevante considerar, pois, na espécie, a circunstância de que a aplicação das regras contidas na Lei nº 9.099/95, nos casos de competência originária deste Supremo Tribunal Federal, traduz a concretização de um inequívoco programa estatal de despenalização, compatível, ao menos em seus aspectos essenciais, com o novo paradigma de Justiça Criminal que se busca construir no âmbito de nosso ordenamento positivo, notadamente se se considerarem os fundamentos jurídicos, sociais e éticos que dão suporte doutrinário aos postulados do Direito penal mínimo, subjacentes à formulação do mencionado diploma legislativo (LUIZ FLÁVIO GOMES, “Direito Penal Mínimo: lineamento das suas metas”, “in” Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, vol. 1, n. 5, p. 71, 1995, Ministério da Justiça).
Assentadas tais premissas, entendo relevante ouvir-se, previamente, o eminente Senhor Procurador-Geral da República sobre a exata adequação típica dos fatos narrados neste procedimento penal, devendo, ainda, pronunciar-se sobre a questão ora submetida ao exame desta Suprema Corte.
Publique-se.
Brasília, 16 de dezembro de 2010.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
Microfísica do poder II - Foucault
Continuando a análise da obra Microfísica do poder, de Foucault, passamos à análise do contra-justiça e guerilha anti-judiciária. O que será exercer um contra-poder em relação à justiça? Qual é o poder real que se exerce em um tribunal popular?
Foucault entende por guerilha anti-judiciária as atitudes e tentativas de ridicularizar o tribunal, atitudes de afronta ao poder, tais como pedir satisfação ao juiz, e atitudes desordeiras e tentativas de furtar-se e escapar da polícia.
A contra-justiça, por outro lado, representa uma face mais perigosa e cruel, como o poder de exercer, com relação a uma pessoa passível de ser julgada e que habitualmente escapa da justiça, um ato de tipo judiciário. Isto é, apoderar-se de uma pessoa, fazê-lo comparecer perante um tribunal, fazer um juiz julga-lo referindo-se certas formas de equidade e condená-lo realmente a uma pena que seria obrigado a cumprir. Isto é tomar exatamente o lugar da justiça.
Vejamos o vídeo da emissora de TV Record, retratando o poder paralelo do crime organizado, que enquadra-se neste paradigma de contra-justiça desenvolvido por Foucault:
quinta-feira, 24 de novembro de 2011
Ensinar o que não se sabe...
Rubem Alves
"Meu querido Roland Barthes passou por experiência semelhante à minha. Também queria ser igual à cigarra. A sua aula inaugural como professor da cadeira de semiologia literária do Collège de France é um texto herético e escandaloso que só pode ser compreendido como palavras de um homem a quem a velhice havia concedido lucidez e coragem para dizer aquilo que via sob a luz do crepúsculo.
No final de sua aula, Barthes fala sobre sua vida, faz a sua confissão de velhice e diz sobre as metamorfoses que a luz crepuscular operara sobre a sua vida. Não há pessimismo no que ele diz. É como se fosse uma ressurreição — ficar jovem de novo.
“Portanto, se quero viver, devo esquecer que meu corpo é histórico, devo lançar-me na ilusão de que sou contemporâneo dos jovens corpos presentes, e não de meu próprio corpo, passado. Em síntese: periodicamente, devo renascer, fazer-me mais jovem do que sou. Com cinquenta e um anos, Michelet começava sua vita nuova: nova obra, novo amor. Mais idoso do que ele… eu também entro numa vita nuova… Empreendo, pois, o deixar-me levar pela força de toda força viva: o esquecimento. Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos.”
“Há uma idade em que se ensina o que se sabe”: esse é o início. Assim é: os professores começam por ensinar saberes. Ensinam primeiro os saberes sabidos, as coisas que, no transcorrer do tempo, foram aprendidas pelas gerações mais velhas, e que agora são transmitidas às gerações
mais novas, como se fossem ferramentas em uma caixa. O ensino dos saberes é a transmissão de uma herança, caixa de ferramentas. O professor, ao ensinar, está dizendo: “Eu estou lhe dando aquilo que sei”. Os saberes são transmitidos para que as novas gerações não tenham de estar começando sempre de novo, da estaca zero. Os velhos ensinam saberes para que os jovens possam começar a navegar a partir do porto aonde eles chegaram. O que, para os velhos, foi porto de chegada, será para os jovens porto de partida: para que possam ir além deles
mesmos.
“Mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe.”
Mas como é possível ensinar saberes que não sei? O navegador voltou de suas viagens trazendo
nas mãos os mapas que desenhara nos mares onde navegara. Mapas são metáforas do mundo dos saberes. São úteis. Neles encontramos as rotas a serem seguidas, caso se deseje. Chegam os alunos. Desejam aprender os mares do mundo. O professor mostra-lhes os seus mapas e fala sobre aquilo que sabe. Os alunos aprendem. Mas, de repente, um aluno inquieto aponta para um vazio indefinido, sem contornos, no mapa.
“— Qual é o nome daquele mar?” —, ele pergunta. O professor responde:
“— O nome daquele mar eu não sei.
Nunca fui lá. Não o naveguei. Não o conheço. Por isso, nada tenho a dizer. É mar desconhecido, por navegar. Mas, com o que sei sobre os outros mares, vou ensinar-lhe a aventurar-se por mares desconhecidos: essa é a aventura suprema. Para isso nascemos…”
“Ensinar o que não se sabe”: “A isso se chama pesquisar”, diz Barthes tranquilamente. Ensinar a pesquisar: essa é uma das grandes alegrias do professor, somente comparável à do pai que vê o filho partindo sozinho como pássaro jovem que, pela primeira vez, se lança sobre o vazio com suas próprias asas. O professor vê o discípulo partindo para o desconhecido, para voltar com os mapas que ele mesmo irá fazer, de um mar onde ninguém mais esteve. É isso que deve ser uma pesquisa e uma tese: uma aventura por um mar que ninguém mais conhece.
Barthes diz, então, algo surpreendente: chegara a sua hora suprema, a hora do esquecimento. Chegara o tempo de desaprender os saberes que havia aprendido. Posso imaginar o espanto que essa declaração deve ter provocado no erudito público académico presente na sua aula. Esquecer, desaprender: são o oposto daquilo que a educação tem proposto até agora. Educar é ensinar, somar saberes sobre fatos, acrescentar competências lógicas. Esquecer significa perder, abrir mão, deixar ir. E, na lógica banal da razão do cotidiano, esquecimento é sempre empobrecimento. Barthes aponta na direção oposta. Teria ficado senil? Quem responde é o poeta T. S. Eliot, num curtíssimo-cortante aforismo: “Num país de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo”.
FONTE: ALVES, Rubem. Livro Sem Fim. Porto: ASA, 2005. Pg.51 e seguintes.
"Meu querido Roland Barthes passou por experiência semelhante à minha. Também queria ser igual à cigarra. A sua aula inaugural como professor da cadeira de semiologia literária do Collège de France é um texto herético e escandaloso que só pode ser compreendido como palavras de um homem a quem a velhice havia concedido lucidez e coragem para dizer aquilo que via sob a luz do crepúsculo.
No final de sua aula, Barthes fala sobre sua vida, faz a sua confissão de velhice e diz sobre as metamorfoses que a luz crepuscular operara sobre a sua vida. Não há pessimismo no que ele diz. É como se fosse uma ressurreição — ficar jovem de novo.
“Portanto, se quero viver, devo esquecer que meu corpo é histórico, devo lançar-me na ilusão de que sou contemporâneo dos jovens corpos presentes, e não de meu próprio corpo, passado. Em síntese: periodicamente, devo renascer, fazer-me mais jovem do que sou. Com cinquenta e um anos, Michelet começava sua vita nuova: nova obra, novo amor. Mais idoso do que ele… eu também entro numa vita nuova… Empreendo, pois, o deixar-me levar pela força de toda força viva: o esquecimento. Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos.”
“Há uma idade em que se ensina o que se sabe”: esse é o início. Assim é: os professores começam por ensinar saberes. Ensinam primeiro os saberes sabidos, as coisas que, no transcorrer do tempo, foram aprendidas pelas gerações mais velhas, e que agora são transmitidas às gerações
mais novas, como se fossem ferramentas em uma caixa. O ensino dos saberes é a transmissão de uma herança, caixa de ferramentas. O professor, ao ensinar, está dizendo: “Eu estou lhe dando aquilo que sei”. Os saberes são transmitidos para que as novas gerações não tenham de estar começando sempre de novo, da estaca zero. Os velhos ensinam saberes para que os jovens possam começar a navegar a partir do porto aonde eles chegaram. O que, para os velhos, foi porto de chegada, será para os jovens porto de partida: para que possam ir além deles
mesmos.
“Mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe.”
Mas como é possível ensinar saberes que não sei? O navegador voltou de suas viagens trazendo
nas mãos os mapas que desenhara nos mares onde navegara. Mapas são metáforas do mundo dos saberes. São úteis. Neles encontramos as rotas a serem seguidas, caso se deseje. Chegam os alunos. Desejam aprender os mares do mundo. O professor mostra-lhes os seus mapas e fala sobre aquilo que sabe. Os alunos aprendem. Mas, de repente, um aluno inquieto aponta para um vazio indefinido, sem contornos, no mapa.
“— Qual é o nome daquele mar?” —, ele pergunta. O professor responde:
“— O nome daquele mar eu não sei.
Nunca fui lá. Não o naveguei. Não o conheço. Por isso, nada tenho a dizer. É mar desconhecido, por navegar. Mas, com o que sei sobre os outros mares, vou ensinar-lhe a aventurar-se por mares desconhecidos: essa é a aventura suprema. Para isso nascemos…”
“Ensinar o que não se sabe”: “A isso se chama pesquisar”, diz Barthes tranquilamente. Ensinar a pesquisar: essa é uma das grandes alegrias do professor, somente comparável à do pai que vê o filho partindo sozinho como pássaro jovem que, pela primeira vez, se lança sobre o vazio com suas próprias asas. O professor vê o discípulo partindo para o desconhecido, para voltar com os mapas que ele mesmo irá fazer, de um mar onde ninguém mais esteve. É isso que deve ser uma pesquisa e uma tese: uma aventura por um mar que ninguém mais conhece.
Barthes diz, então, algo surpreendente: chegara a sua hora suprema, a hora do esquecimento. Chegara o tempo de desaprender os saberes que havia aprendido. Posso imaginar o espanto que essa declaração deve ter provocado no erudito público académico presente na sua aula. Esquecer, desaprender: são o oposto daquilo que a educação tem proposto até agora. Educar é ensinar, somar saberes sobre fatos, acrescentar competências lógicas. Esquecer significa perder, abrir mão, deixar ir. E, na lógica banal da razão do cotidiano, esquecimento é sempre empobrecimento. Barthes aponta na direção oposta. Teria ficado senil? Quem responde é o poeta T. S. Eliot, num curtíssimo-cortante aforismo: “Num país de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo”.
FONTE: ALVES, Rubem. Livro Sem Fim. Porto: ASA, 2005. Pg.51 e seguintes.
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Microfisica do Poder em Foucault - I
O poder para Foucault funciona e se exerce em rede, pois cada um de nós é, no fundo, detentor de um certo poder. O poder é exercício do poder, e não se identifica em uma única pessoa. Podemos identificar o homem como produto do poder e do saber.
Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e uma relação. Poder é luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica. Não é um lugar, que se ocupa, nem um objeto, que se possui. o poder se exerce e se disputa.
O poder se exerce em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e neste complexo interligado, os micro-poderes existem integrados ou não ao Estado.
Há uma microfísica do poder, paralelo ao instrumento estatal, mas que possui força motriz modificadora nas relações de poder existente em determinada sociedade.
O que Foucault chamou de microfísica do poder significa tanto um deslocamento do espaço da análise, quanto do nível em que esta se efetua. A idéia básica de Foucault é de mostrar que as relações de poder não se passam fundamentalmente nem ao nivel do direito, nem da violência; nem basicamente contratuais, nem unicamente repressivas. O poder é exercício produtor de individualidade, tendo como objeto o saber, observando-se que não há saber neutro, pois todo saber é político e ideológico, possuindo como sua gênese as relações de poder. Trata-se de uma petição de princípio: o poder gera o saber; o saber leva ao poder.
Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e uma relação. Poder é luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica. Não é um lugar, que se ocupa, nem um objeto, que se possui. o poder se exerce e se disputa.
O poder se exerce em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e neste complexo interligado, os micro-poderes existem integrados ou não ao Estado.
Há uma microfísica do poder, paralelo ao instrumento estatal, mas que possui força motriz modificadora nas relações de poder existente em determinada sociedade.
O que Foucault chamou de microfísica do poder significa tanto um deslocamento do espaço da análise, quanto do nível em que esta se efetua. A idéia básica de Foucault é de mostrar que as relações de poder não se passam fundamentalmente nem ao nivel do direito, nem da violência; nem basicamente contratuais, nem unicamente repressivas. O poder é exercício produtor de individualidade, tendo como objeto o saber, observando-se que não há saber neutro, pois todo saber é político e ideológico, possuindo como sua gênese as relações de poder. Trata-se de uma petição de princípio: o poder gera o saber; o saber leva ao poder.
terça-feira, 8 de novembro de 2011
Filosofia é isso:
“A filosofia se ocupa daqueles temas que a ninguém, a não ser a um filósofo, ocorreria estudar"
Samuel Alexander
Samuel Alexander
Assinar:
Postagens (Atom)